O abismo matinal de Alice.

alice falling

Os dias começam iguais e mimados. Levanto cambaleando para tomar o café com leite de todo dia na mesa que meus pais arrumaram, com o café que eles fizeram. As proezas de ser filha única e abençoada pela vontade divina de algo bem maior do que nós, que insistem em me mimar e pela qual sou eternamente agradecida. Pego minhas coisas e rumo para a vida. 

Estou sempre no mesmo ônibus. Vejo rostos familiares que não se se reconheceria fora do veículo. Se dei sorte e estou sentada, saco o livro da vez de dentro da bolsa e começa-se assim a aventura. “Esses dois meses de férias me tiraram do ritmo”, penso focada na sensação de náusea que avança sobre mim. Logo, logo, eu voltarei à velocidade antiga. Livro aberto, fones de ouvido, ônibus cheio, vamos lá. O livro da vez é On the Road, de Jack Kerouac. Lá estava eu, subindo e descendo os elevados do Rio de Janeiro. Os mesmos de todos os dias. Lá estava eu, perdida no meio do dia a dia de Sal em Denver, ainda no início do livro. Em um começo bem detalhado de quase nada, de coisas que poderiam ter sido ditas em metade das folhas que já li. Penso sobre isso e começo a achar que possa ser proposital… Bem, não era meu intuito aqui resenhar o miot da geração beat e sim falar sobre como eu caí.

Eu estava mergulhada nas páginas, ouvindo Sal descrever os seus dias, com todos os detalhes, pensamentos e, até então, inércia. Voei pelas páginas sem perceber. E voltei a mim porque pensei que aquele era o livro preferido de uma amiga muito querida. Ali, naquele exato momento, eu era Alice atrás do coelho de relógio de bolso, caindo em um abismo matinal. Durou um segundo eterno. Esqueci onde estava, quem eu era e para onde estava indo. Bateu aquela solidão, como se eu fosse o último ser humano em um quarto escuro e sem chão. Tudo isso em um piscar de olhos. Ufa, o mundo tinha térreo de novo. Fechei as páginas que me fizeram seguir o coelho e comecei a escrever esse texto sem pé nem cabeça. Sentia que precisava contar para alguém aquela sensação tão inexplicavelmente nova. Ouvi uma frase em uma peça em que a atriz que monologava nos indagava: “haverá pior solidão do que a ausência de si?”. Pela primeira vez me senti ausente de mim e não, não há. Constantemente, preenchemos nosso dia com gostos e desgostos que nos fazem sentir melhor, mais acolhidos, talvez. Eu não sei porque esse livro me levou a sentir isso, nem mesmo sabia que estava tão fundo nele.Sei que senti e foi aterrorizante. Vi que não importa muito estar sozinha, mas não conseguiria viver completamente só, ausente, inclusive, de mim. Por isso, sigo o coelho para achar a saída, exatamente como Alice fez. Para que, assim, eu não veja até mesmo o desânimo como algo tão simplório. “Que desânimo! Que desânimo!”

O que achou?